Sernada, 7h15
Cumplicidades
Nos carris que a ligavam a Viseu, a Espinho e a Aveiro prestou serviço o meu avô Miguel. Na escola primária que agora já não tem crianças lecionou a minha avô Alda Marques Castilho. Por teimosia dos adultos que foram crianças no tempo em que Sernada tinha a importância de um lugar cêntrico, e que consigo consideraram ter aprendido a crescer, tem a rua principal com o seu nome. Sernada uniu-os e do casal despontaram três crianças, que ali viveram os primeiros anos de um percurso que é longo.
Sernada e o comboio estão umbilicalmente unidos. Têm identidade e cruzaram destinos. Definham ambos, cúmplices, lado a lado. E ambos são os menos responsáveis pela situação a que chegaram.
No bar da estação, eu e o revisor da segunda composição da manhã que iria partir com destino a Aveiro e uma senhora pronta a receber os primeiros clientes. Um cafezinho para aquecer a viagem. “O bilhete tira-se no comboio?”. Afirmativo!
Cumplicidades
Nos carris que a ligavam a Viseu, a Espinho e a Aveiro prestou serviço o meu avô Miguel. Na escola primária que agora já não tem crianças lecionou a minha avô Alda Marques Castilho. Por teimosia dos adultos que foram crianças no tempo em que Sernada tinha a importância de um lugar cêntrico, e que consigo consideraram ter aprendido a crescer, tem a rua principal com o seu nome. Sernada uniu-os e do casal despontaram três crianças, que ali viveram os primeiros anos de um percurso que é longo.
Sernada e o comboio estão umbilicalmente unidos. Têm identidade e cruzaram destinos. Definham ambos, cúmplices, lado a lado. E ambos são os menos responsáveis pela situação a que chegaram.
No bar da estação, eu e o revisor da segunda composição da manhã que iria partir com destino a Aveiro e uma senhora pronta a receber os primeiros clientes. Um cafezinho para aquecer a viagem. “O bilhete tira-se no comboio?”. Afirmativo!
Sernada, 7h30
Rebanho que não se importa
Foi em Sernada do Vouga, junto ao Rio Vouga, ambos ainda ensonados com a serenidade de uma manhã fria de outono, que a viagem se iniciou. Com pontualidade britânica. Onde quase nada mexia, um comboio rolava vagarosa e preguiçosamente sobre carris, cumprimentando o rio do alto da ponte rodoferroviária - a mesma que, à época da inauguração, prometia trazer a acessibilidade do progresso.
Dois jovens estudantes embarcaram para Águeda; mais um passageiro, para Esgueira, entrou mesmo à hora. "Venha devagar que ele espera", avisou, solicito, o revisor.
O sol procurava ainda despertar por detrás das colinas. Em Macinhata, 10 minutos e 2,7 kms depois, as primeiras duas tímidas apitadelas, como que apressando cinco jovens que desciam a rua, a tempo de entrar na automotora sem perder um minuto de espera. Coordenação certamente de todos os dias…
Há autocarro como alternativa mas “o bilhete fica mais caro e demora mais tempo se o horário anterior fosse cumprido”. A viagem de comboio “demorava 20 minutos, agora demora 40 até Águeda”.
O comboio levava já mais de uma dezena de passageiros, seguindo em ritmo que mais parecia convidar à contemplação, não fosse aquele um cenário já muito visto. Abanando com ligeireza mas seguindo; quase parando na breve subida para Carvalhal da Portela, com os campos do Vouga ali ao lado e um rebanho sem se importar. Indiferentes, aceitam o que lhes cabe em sorte… como as pessoas.
Os passageiros mais jovens juntaram-se na carruagem de trás, em grupos, conversando e folheando possivelmente alguma matéria. Adultos preferiam a da frente, soturna, sentando-se longe um dos outros: uma passageira na frente da carruagem, o que chegara em cima da partida na Sernada dormitava a meio e, a mais recente, desde Carvalhal da Portela, na outra metade.
Rebanho que não se importa
Foi em Sernada do Vouga, junto ao Rio Vouga, ambos ainda ensonados com a serenidade de uma manhã fria de outono, que a viagem se iniciou. Com pontualidade britânica. Onde quase nada mexia, um comboio rolava vagarosa e preguiçosamente sobre carris, cumprimentando o rio do alto da ponte rodoferroviária - a mesma que, à época da inauguração, prometia trazer a acessibilidade do progresso.
Dois jovens estudantes embarcaram para Águeda; mais um passageiro, para Esgueira, entrou mesmo à hora. "Venha devagar que ele espera", avisou, solicito, o revisor.
O sol procurava ainda despertar por detrás das colinas. Em Macinhata, 10 minutos e 2,7 kms depois, as primeiras duas tímidas apitadelas, como que apressando cinco jovens que desciam a rua, a tempo de entrar na automotora sem perder um minuto de espera. Coordenação certamente de todos os dias…
Há autocarro como alternativa mas “o bilhete fica mais caro e demora mais tempo se o horário anterior fosse cumprido”. A viagem de comboio “demorava 20 minutos, agora demora 40 até Águeda”.
O comboio levava já mais de uma dezena de passageiros, seguindo em ritmo que mais parecia convidar à contemplação, não fosse aquele um cenário já muito visto. Abanando com ligeireza mas seguindo; quase parando na breve subida para Carvalhal da Portela, com os campos do Vouga ali ao lado e um rebanho sem se importar. Indiferentes, aceitam o que lhes cabe em sorte… como as pessoas.
Os passageiros mais jovens juntaram-se na carruagem de trás, em grupos, conversando e folheando possivelmente alguma matéria. Adultos preferiam a da frente, soturna, sentando-se longe um dos outros: uma passageira na frente da carruagem, o que chegara em cima da partida na Sernada dormitava a meio e, a mais recente, desde Carvalhal da Portela, na outra metade.
Valongo do Vouga, 7h53
“Falham e não dão explicações”
O revisor certificava-se se as portas automáticas seguiam fechadas, assegurando-se se o frio não seria um intruso inóspito. Não, a temperatura no interior estava ótima! Mas o Vouguinha parecia movido a vapor. Seguia muito devagar, agora com o Marnel à vista, serpenteando o vale longo… de Valongo. O dia despertava definitivamente. Duas idosas entravam no apeadeiro de Valongo do Vouga. Eram 7h53, 23 minutos depois de deixar Sernada.
A automotora quase parava junto aos vinhedos da Aguieira. “Dantes entrava muito mais gente, rapazes para a escola, mas desistiram quando isto começou a andar devagar. E nunca é certo, falham e não dão explicações, dizem para nós nos queixarmos em Aveiro”, lamentava-se uma senhora que tricotava.
Então como faz quando o comboio não chega? “Peço boleia. Mas não estou para incomodar as pessoas, porque também têm a sua vida. Trabalho em Águeda e preciso de transporte. Os estudantes faltavam à primeira aula. Quando era a CP andavam sempre aí a arranjar a linha; com a REFER numa mais se viu ninguém.”
E a pessoa desfiava lamentações. “Num quarto de hora uma pessoa chegava a Águeda. Em Águeda está tudo: finanças, bancos, médicos… Agora é isto, se as portas abrissem dava para ir à fruta e voltar a entrar”.
Mourisca do Vouga, 8h06
Estação que já foi…
Mourisca do Vouga anunciava aumento de velocidade mas seria falsa promessa. Oito passageiros na minha carruagem. E os jovens lá atrás. Devagar, devagarinho… como se os passageiros fossem turistas a apreciar vários ângulos de uma raríssima obra de arte ou encantos de uma natureza única! O que observam, contudo, como todos os dias, é a degradação da estação abandonada.
“Funciona muito mal, nunca é certo”, resumia-nos uma passageira recém-entrada. “Havia pessoas na universidade sénior que vinham de comboio, agora vão de carro; mas conheço muita gente que, com estas dificuldades todas, dantes iam de carro e agora vão de comboio. Sempre fica mais barato... As pessoas ficam isoladas?”
O comboio dava a entender que ia mesmo parar na descida para Águeda. Continuavam as lamentações: “Uma pessoa está uma hora à espera, não aparece o comboio, liga para saber e ninguém dá cavaco. Ao que isto chegou!”. A seguir, uma interrogação: “Dantes a linha era aberta à picareta, agora que têm máquinas é que deixam fechar?”
Estação que já foi…
Mourisca do Vouga anunciava aumento de velocidade mas seria falsa promessa. Oito passageiros na minha carruagem. E os jovens lá atrás. Devagar, devagarinho… como se os passageiros fossem turistas a apreciar vários ângulos de uma raríssima obra de arte ou encantos de uma natureza única! O que observam, contudo, como todos os dias, é a degradação da estação abandonada.
“Funciona muito mal, nunca é certo”, resumia-nos uma passageira recém-entrada. “Havia pessoas na universidade sénior que vinham de comboio, agora vão de carro; mas conheço muita gente que, com estas dificuldades todas, dantes iam de carro e agora vão de comboio. Sempre fica mais barato... As pessoas ficam isoladas?”
O comboio dava a entender que ia mesmo parar na descida para Águeda. Continuavam as lamentações: “Uma pessoa está uma hora à espera, não aparece o comboio, liga para saber e ninguém dá cavaco. Ao que isto chegou!”. A seguir, uma interrogação: “Dantes a linha era aberta à picareta, agora que têm máquinas é que deixam fechar?”
Águeda, 8h20
Novos passageiros, muda a velocidade
Águeda anunciava-se às 8h16. Descida feita a travar. Ronca e abana. Prédios à vista. Estação. O comboio imobiliza-se. 8h20, 50 minutos após o início. Saem quase todos os passageiros, entram outros. Uma nova viagem de inicia.
Espera-se pela composição que vem de Aveiro. Desta sairiam pelo menos 33 passageiros, quase todos jovens, numa contagem rápida e parcial. Águeda ficava para trás às 8h25.
A velocidade de circulação aumentava, nem parecia a mesma composição. Curiosamente, passava a abanar menos; os esticões eram mais fortes mas menos frequentes.
Os campos do Águeda pareciam assim correr mais depressa. Oronhe atingia-se em três minutos, um sucesso para quem andou a caracol tanto tempo. Treze eram os passageiros na minha carruagem. A de trás vai mais composta, com pelo menos 19 passageiros. Atrás de mim, um cidadão estrangeiro a trabalhar por cá, entrado no apeadeiro da Aguieira, ia a uma consulta a Coimbra. Tinha de lá estar às 11h30 mas desconhecia se a ligação era imediata. Podia ser que chegasse a tempo… três hora e meia após iniciar viagem!
Eirol, 8h42
Vozes desencontradas que aumentam com o ritmo
Cabanões. Uma passageira entrava apressada. Os carris continuavam a levar-nos a Aveiro. Uns liam, outros conversavam, alguns olhavamm vagamente o cenário, que continuava mais veloz. Mais um passageiro em Travassô. Tirou a mochila das costas e um caderno da mochila. Adiantava trabalho. A pacatez inicial alterara-se pelo burburinho de conversas a dois.
Eirol à vista. A lotação aumentava nas duas carruagens. São 8h42. Sernada ficou a uma hora a 12 minutos, Águeda a apenas 17 minutos.
Em Eixo, uma automotora com destino a Águeda esperava-nos no seu sítio, na estação. Paragem curta. Lotação a aumentar. O andamento alegrava, o ambiente taciturno do início mudara, aumentando o ritmo de vozes desencontradas e o roncar constante do veículo. Havia quem preferisse viajar de pé. São 8h52, faltava Azurva e Esgueira apenas para chegar finalmente ao destino, Aveiro. Uma hora e meia depois de Sernada do Vouga, 35 minutos após Águeda.
O tal passageiro apressado de Sernada, rejuvenescido pela hora que dormitou e pelos minutos de conversação com uma colega utente, munido já de óculos escuros e com fones nos ouvidos, sairia em Esgueira. Três horas de comboio em 60 kms por dia… nada mau!
Novos passageiros, muda a velocidade
Águeda anunciava-se às 8h16. Descida feita a travar. Ronca e abana. Prédios à vista. Estação. O comboio imobiliza-se. 8h20, 50 minutos após o início. Saem quase todos os passageiros, entram outros. Uma nova viagem de inicia.
Espera-se pela composição que vem de Aveiro. Desta sairiam pelo menos 33 passageiros, quase todos jovens, numa contagem rápida e parcial. Águeda ficava para trás às 8h25.
A velocidade de circulação aumentava, nem parecia a mesma composição. Curiosamente, passava a abanar menos; os esticões eram mais fortes mas menos frequentes.
Os campos do Águeda pareciam assim correr mais depressa. Oronhe atingia-se em três minutos, um sucesso para quem andou a caracol tanto tempo. Treze eram os passageiros na minha carruagem. A de trás vai mais composta, com pelo menos 19 passageiros. Atrás de mim, um cidadão estrangeiro a trabalhar por cá, entrado no apeadeiro da Aguieira, ia a uma consulta a Coimbra. Tinha de lá estar às 11h30 mas desconhecia se a ligação era imediata. Podia ser que chegasse a tempo… três hora e meia após iniciar viagem!
Eirol, 8h42
Vozes desencontradas que aumentam com o ritmo
Cabanões. Uma passageira entrava apressada. Os carris continuavam a levar-nos a Aveiro. Uns liam, outros conversavam, alguns olhavamm vagamente o cenário, que continuava mais veloz. Mais um passageiro em Travassô. Tirou a mochila das costas e um caderno da mochila. Adiantava trabalho. A pacatez inicial alterara-se pelo burburinho de conversas a dois.
Eirol à vista. A lotação aumentava nas duas carruagens. São 8h42. Sernada ficou a uma hora a 12 minutos, Águeda a apenas 17 minutos.
Em Eixo, uma automotora com destino a Águeda esperava-nos no seu sítio, na estação. Paragem curta. Lotação a aumentar. O andamento alegrava, o ambiente taciturno do início mudara, aumentando o ritmo de vozes desencontradas e o roncar constante do veículo. Havia quem preferisse viajar de pé. São 8h52, faltava Azurva e Esgueira apenas para chegar finalmente ao destino, Aveiro. Uma hora e meia depois de Sernada do Vouga, 35 minutos após Águeda.
O tal passageiro apressado de Sernada, rejuvenescido pela hora que dormitou e pelos minutos de conversação com uma colega utente, munido já de óculos escuros e com fones nos ouvidos, sairia em Esgueira. Três horas de comboio em 60 kms por dia… nada mau!
Aveiro, 9h
“Então também andas de comboio?”
Quem chega desta viagem parece estar num mundo novo. Vinte quilómetros em linha reta fazem diferenças. Junto à estação da cidade, um grupo de asiáticos vibravam com as pinturas em azulejo do majestoso edifício velho. Sempre com aquela eletricidade e sorriso, expressivos mas impercetíveis nos dizeres entre si. Animavam uma cidade ainda preguiçosa mas, aquela hora, farta de receber gente de todos os lados, desembarcando apressadamente aos magotes. O largo da estação e a avenida Lourenço Peixinho estavam porém quase desertos, as lojas ainda não abriam, os cafés acolhiam alguns clientes, mas certamente seriam milhares os que já labutavam sem se sentir.
"Então também andas de comboio?" A interrogação, que procurava a cordialidade de circunstância, ser-me-ia colocada por alguém ligado à CP que me reconheceu de outras lides. Este é, afinal, o entendimento que em Portugal se tem dos transportes públicos. Num país pobre os transportes públicos são para os pobretanas quando países ricos ganham ainda mais eficiência (recursos públicos e rendimentos individuais) potenciando a sua utilização? Que paradoxo! Iremos longe sem crescimento mental?_
“Então também andas de comboio?”
Quem chega desta viagem parece estar num mundo novo. Vinte quilómetros em linha reta fazem diferenças. Junto à estação da cidade, um grupo de asiáticos vibravam com as pinturas em azulejo do majestoso edifício velho. Sempre com aquela eletricidade e sorriso, expressivos mas impercetíveis nos dizeres entre si. Animavam uma cidade ainda preguiçosa mas, aquela hora, farta de receber gente de todos os lados, desembarcando apressadamente aos magotes. O largo da estação e a avenida Lourenço Peixinho estavam porém quase desertos, as lojas ainda não abriam, os cafés acolhiam alguns clientes, mas certamente seriam milhares os que já labutavam sem se sentir.
"Então também andas de comboio?" A interrogação, que procurava a cordialidade de circunstância, ser-me-ia colocada por alguém ligado à CP que me reconheceu de outras lides. Este é, afinal, o entendimento que em Portugal se tem dos transportes públicos. Num país pobre os transportes públicos são para os pobretanas quando países ricos ganham ainda mais eficiência (recursos públicos e rendimentos individuais) potenciando a sua utilização? Que paradoxo! Iremos longe sem crescimento mental?_
estação ferroviária de Aveiro A decoração em azulejos da antiga estação reproduz o património de referência da região, atividades tradicionais desenvolvidas até à época da sua construção e cenários proporcionados pelas linhas ferroviárias. Entre estas, a ponte ferroviária do Poço de Santiago, situada entre Sernada do Vouga e Paradela do Vouga, hoje aproveitada para pista ciclável.
AUGUSTO SEMEDO (texto e fotos)
publicado nas edições impressa e e-paper de 8/jan/2014